Mundo
24 março 2018 às 00h59

"Há uma campanha russofóbica sem precedentes"

O embaixador russo em Portugal, Oleg Belous, deu esta entrevista ao DN dias depois da reeleição de Vladimir Putin e mostrou entender bem português, língua em que foram feitas as perguntas, preferindo responder, porém, em russo, com tradução por outro diplomata. Além da geopolítica, no final falou das relações com Portugal e da admiração dos russos pela nossa história, com os Museus do Kremlin a mostrarem por estes dias a exposição Senhores dos Oceanos. Não faz prognósticos sobre futebol, apesar de dizer que a Rússia tal como Portugal é ambiciosa, mas espera que o Mundial ajude a promover a imagem do país.

Leonídio Paulo Ferreira

Com este resultado reforçado do presidente Vladimir Putin nas eleições de domingo passado, está garantida a continuidade da ação política da Rússia nos próximos seis anos?

O povo russo reafirmou a sua confiança no presidente Putin. A afluência nestas eleições foi de 67% e 76,7% dos eleitores votaram em Vladimir Putin. O que significa que mais de 50 milhões de eleitores votaram no presidente. E isto significa o apoio à completa continuidade da linha política que tem sido realizada pelo presidente e pelo governo. Os elementos principais desta política são bem conhecidos. Já foram muitas vezes abordados pelo presidente. O objetivo principal é assegurar os interesses nacionais da Rússia, fornecer condições para o crescimento económico e de-senvolvimento dos programas sociais. Claro que, ao mesmo tempo, nós sabemos que os outros países têm os seus próprios interesses. E é por isso que nós estamos a favor das relações baseadas na igualdade de direitos. Todos devem ter em consideração o interesse dos outros. Tudo isto foi enunciado pelo presidente Putin em 2007 no decorrer da conferência internacional de Munique sobre os assuntos da política de segurança. O objetivo principal é garantir a prosperidade do povo russo, e é por isso que precisamos do desenvolvimento económico, do avanço tecnológico e de uma transição para a economia digital. Eu queria destacar que o próprio sistema de eleição do presidente da Federação da Rússia é o mais democrático. Somos um dos poucos países em que o presidente, a mais alta autoridade, é eleito pelo voto direto. Temos a mesma situação na França, mas por exemplo nos Estados Unidos o sistema é indireto, com um colégio eleitoral.

Falou da necessidade de fazer crescer a economia e, de facto, em 2017 o PIB aumentou, mas os anos anteriores foram complicados por causa das sanções e sobretudo pela queda do preço do petróleo. O que está a Rússia a fazer, por um lado, para contrariar o efeito das sanções e, por outro, para que a economia seja menos dependente do petróleo e do gás natural?

Há dois ou três anos tivemos um período bastante complicado. Houve estagnação e até uma certa queda do PIB. Vários fatores contribuíram para essa situação, casos da queda abrupta do preço do petróleo e do gás e das sanções, que também limitaram o fluxo de investimento externo, mas no ano passado essas tendências foram interrompidas. Temos um crescimento do PIB de 1,5%. Conseguimos baixar a inflação para menos de 3%. Quanto ao preço do petróleo, foi um dos problemas para a economia do país, mas já não é assim hoje. Porque nas nossas exportações o petróleo já não é o produto principal. É um dos muito importantes, mas já não é o principal. Graças à nossa cooperação com os países da OPEP conseguimos estabilizar os preços no mercado internacional. Hoje [quinta-feira] vi o preço do petróleo e era de mais de 67 dólares.

Que noutras áreas a economia pode ser forte? A agricultura, por exemplo, é uma das áreas que podem exportar?

Já mencionou o efeito das sanções, mas não é nosso problema. Não fomos nós russos quem iniciou o processo. Foram os EUA e a União Europeia. Como sabe, tivemos de tomar medidas de resposta. A União Europeia e inclusive Portugal foram afetados, principalmente no que se refere a exportações de produtos agrícolas. E em certos aspetos as sanções tiveram um efeito positivo para a economia russa. O setor da agricultura tem crescido bastante, cerca de 4% ou 5% por ano. No último ano tivemos uma colheita recorde de cereais. Ocupámos o primeiro lugar no mundo nas exportações de cereais. No ano agrícola, que vai de uma primavera a outra, vamos exportar 50 milhões de toneladas. Temos boas oportunidades no que toca à exportação de óleo vegetal, açúcar a mesma coisa, aves, carne de porco. Temos ainda certos problemas com a carne bovina e sei que Portugal tinha interesse em exportar para a Rússia, mas as sanções continuam e as contra medidas também. Temos um grande défice, naturalmente, de bananas, ananases e laranjas, mas isso é por causa do clima. Mas em geral temos a segurança alimentar garantida no país. No que se refere à indústria, cerca de 80% a 85% de todas as peças são produzidas na Rússia. Temos alguns problemas na área eletrónica, mas estão a ser resolvidos. Na farmacêutica tivemos um avanço significativo. Por isso, de certa maneira, as sanções tiveram um impacte positivo porque nos fizeram compreender que podemos produzir tudo.

Essas sanções ocidentais resultaram da anexação da Crimeia e do conflito separatista no Leste da Ucrânia. Como estão as relações russo-ucranianas?

Vamos começar pelo princípio: a Crimeia é parte do território russo há quatro anos em resultado de um referendo. Mais de 90% da população da Crimeia manifestou-se a favor da reunificação. Foi um regresso à Rússia. Recebemos a respetiva solicitação oficial e foi tomada a decisão de responder positivamente. A Crimeia é hoje uma parte integrante da Federação Russa. Quanto à Ucrânia, passaram quatro anos após o golpe de Estado, não há dúvidas hoje da parte de ninguém de que foi um golpe de Estado. Temos cada vez mais provas de provocações ao redor desta situação. Quem participou nessas atividades? Quem financiou tudo isso? Não quero voltar a pormenores. É com quem financiou. A nossa posição quanto à Ucrânia é bem clara: temos os Acordos de Minsk, que foram também aprovados pelo Quarteto da Normandia, ou seja, os líderes de França, Alemanha, Rússia e Ucrânia. Estes Acordos de Minsk preveem uma sequência de passos muito concretos: primeiro, as regiões de Donetsk e Lugansk são parte da Ucrânia; o primeiro passo é o cessar-fogo.; adoção por Kiev, no âmbito de entendimento com o resto da Ucrânia, da definição do estatuto especial destas regiões; depois a adoção de legislação eleitoral; e por fim uma amnistia. Nenhum destes passos foi realizado pela Ucrânia. Há pouco tempo o Parlamento da Ucrânia adotou uma lei que foi assinada pelo presidente Petro Porochenko, intitulada lei sobre a reintegração, que reduz a zero tudo o que foi assinado em Minsk. Esta lei prevê a possibilidade de uma solução militar do problema. E não há nenhum cessar-fogo. O que está a acontecer na Ucrânia, é melhor perguntar aos ucranianos. Kiev está a fazer tudo para prejudicar as relações com a Rússia. Artistas russos estão proibidos de entrar na Ucrânia, livros estão a ser proibidos. A educação nas escolas da Ucrânia nas línguas russa, húngara, polaca está a ser proibida. Os jornalistas russos são expulsos da Ucrânia. Tudo isto vai ficar na consciência deles.

Em relação à intervenção militar russa na Síria, de início especulou-se se a Rússia não estaria a repetir a União Soviética e a envolver-se num problema como foi o Afeganistão, mas o resultado foi que realmente conseguiu ter um efeito de resolução do conflito a favor do presidente Bachar Assad. Estando ainda a haver combates, pode dizer-se já que a Rússia foi decisiva para acabar com a guerra?

Nós somos a Federação da Rússia, e se no Afeganistão houve erros, foram da União Soviética. E aqueles erros cometidos pela União Soviética estão a ser repetidos pelos Estados Unidos. Estão presentes lá desde 2001 em reação ao ataque terrorista em Nova Iorque e não conseguiram ainda encontrar nenhuma solução. O que estão a fazer é conseguir bases militares. Quanto à Síria, a nossa posição é bem evidente. Estamos a favor de uma Síria livre, próspera, laica e com as fronteiras atuais. A única autoridade legítima é o presidente Assad e o seu governo. O Daesh chegou a controlar 70% do território do país e houve muita gente morta. Então o presidente Assad solicitou a ajuda da Rússia no combate ao terrorismo. Prestámos esse apoio. Enviámos um contingente para a Síria. Sobretudo, aviões e helicópteros. Neste momento, 10% do território ainda estará controlado pelos terroristas. Junto com a Turquia e o Irão, empenhámo-nos muito na criação de zonas de desescalada. Assim, o processo de Astana, onde decorreram as negociações, teve como ideia negociar com todos. Quando em Sochi, em janeiro, fizemos uma reunião com a participação de quase todas as forças políticas, foi tomada a decisão de começar a elaborar o projeto de Constituição da Síria. Foi criado pelos próprios sírios. E nós juntamente com o Irão e a Turquia consideramos que esta é a nossa contribuição para os esforços da ONU para uma solução política. Esperamos que em Genebra o representante especial do secretário-geral da ONU, Stefan de Mistura, possa começar o processo sobre a Constituição da Síria. Temos muitas insinuações dos Estados Unidos e de outros membros da dita coligação internacional que não foi chamada por Damasco, e o que quero assinalar é que os esforços realizados no âmbito do processo de Astana têm como objetivo apoiar o empenho das Nações Unidas.

Falou dos Estados Unidos, que recentemente alteraram a sua doutrina nuclear, e em resposta o presidente Putin disse que a Rússia possui um arma capaz de destruir todas as outras. Como estão as relações com os EUA nesta era Donald Trump?

As nossas relações com os Estados Unidos estão no momento num ponto muito baixo. Há uma campanha de carácter russofóbico iniciada nos EUA e que não tem precedentes. Acreditamos que na política o realismo deve prevalecer, por isso precisamos de falar com os EUA e os EUA precisam de falar connosco, numa base de igualdade de direitos, não pode ser uma situação em que os americanos dizem uma coisa e os outros têm de seguir. Nos anos 70 e 80 do século passado foram conseguidos resultados interessantes no que se refere à redução do risco nuclear. Em 1972 foi assinado o acordo com os Estados Unidos sobre a defesa antimíssil para se manter um equilíbrio entre os armamentos de defesa e os ofensivos. Houve uma redução tanto de lançadores como de ogivas nucleares. Mas em 2002 os Estados Unidos declararam abandonar este acordo. As autoridades russas informaram os americanos de que isso prejudica o equilíbrio e que nós iríamos encontrar outras possibilidades para restabelecer esse equilíbrio. Os americanos disseram "OK, nós tomamos as nossas decisões e vocês o que quiserem". O que temos hoje? Os EUA criaram no Alasca e na Califórnia sistemas antimíssil. Na Roménia já está instalado o mesmo sistema. Estão a ser criadas instalações na Polónia. E a mesma coisa está a ser feita no Japão e na Coreia do Sul. No Mediterrâneo existe esse armamento nos navios americanos. Quando tudo isto se iniciou, os americanos explicaram que era por causa do Irão. Se considerarmos a geografia, este sistema contorna o território da Federação Russa. E no início de março o presidente Putin fez um discurso perante a assembleia da Rússia, no decorrer do qual anunciou qual era a nossa resposta para esta situação. Temos novos mísseis balísticos estratégicos, que não podem ser intercetados nem por sistemas existentes nem por outros a ser elaborados. Esta é a nossa resposta, mas o importante é que ao mesmo tempo estamos dispostos a uma negociação sobre o equilíbrio estratégico. Já depois das eleições, o presidente teve uma reunião com os outros candidatos e declarou que o objetivo principal para o próximo mandato é tratar dos assuntos internos, educação, saúde pública, salários, sistema social. Quanto à segurança nacional já fizemos quase tudo. E disse que reduziremos as despesas militares. Relembro que as nossas despesas são 50 mil milhões de dólares, enquanto os Estados Unidos gastam 700 mil milhões. Se os americanos querem falar, estamos disponíveis. O presidente Trump agora está a ser criticado pelo telefonema que fez ao presidente Putin a dar parabéns pela vitória...

Mas esse telefonema, do ponto de vista da Rússia, foi um sinal positivo...

Sim, foi positivo. E o presidente Trump disse que seria bom reunirem-se nos próximos tempos. Mas vemos um fundo de histeria em redor desta conversa.

O senhor falou de russofobia nos Estados Unidos e não só. Como é que a Rússia reage às acusações sistemáticas de que tenta influenciar as eleições noutros países e também de que faz assassínios seletivos, como o ex-espião morto há dias no Reino Unido?

Quanto tempo passou já depois da eleição do presidente Trump? Quantas comissões foram criadas nos EUA para investigar se houve interferência? Quase todas já terminaram as suas atividades sem terem encontrado nenhuma prova. O presidente russo declarou várias vezes, inclusive numa recente entrevista à NBC, que não interferimos nas eleições americanas. Mas dada aquela histeria iniciada nos Estados Unidos, surgiram acusações sobre a alegada interferência na Alemanha, no referendo do brexit e, o que é mais ridículo, até na Catalunha. E em relação à Grã-Bretanha, o que se está a passar é uma pura provocação. A excelentíssima primeira-ministra Theresa May vai ao Parlamento e diz: "Não temos dados, mas é altamente provável que foi a Rússia." Uma afirmação impensável nas relações internacionais: a Rússia devia prestar explicações no prazo de 24 horas. Mas sobre o quê? Não admitimos a ninguém que fale connosco nesta linguagem. Nós dissemos que nos dessem por favor provas, as amostras. E onde estão o pai e a filha? E vamos encontrar respostas. Para a comissão das armas químicas, existem certos mecanismos para estes dados serem analisados. A primeira-ministra britânica acusou a Rússia ainda antes do início da própria investigação. A parte britânica convidou os peritos da organização das armas químicas e estes dizem que para identificar substâncias levará duas a três semanas, mas os britânicos desde o início dizem saber o nome. E o ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, está a tentar obter apoio nos outros países europeus para as acusações. É um senhor que, apesar de a Grã-Bretanha ter feito parte da coligação antinazi nos anos 1940, comparou o Mundial de futebol da Rússia com os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. É um problema de saúde mental, digamos assim.

Como é que a Rússia vê a ascensão da China, cada vez mais rica e também cada vez mais afirmativa?

A China conseguiu obter resultados na economia muito impressionantes. E temos certa inveja daquilo que as autoridades chinesas e o povo chinês conseguiram atingir. Temos uma parceria estratégica com a China, quer no âmbito bilateral quer no internacional. Temos laços económicos muito fortes com a China. Nem todos gostam desta ascensão da China. O presidente Trump assinou ontem um documento impondo restrições ao comércio com a China, pois os EUA estariam a perder no mínimo 30 mil milhões de dólares por ano. Também aumentou taxas sobre alumínio e aço. E isso vai afetar alguns países europeus. Já mencionei o discurso do presidente Putin em Munique em 2007. Naquele momento o nosso presidente disse que não podia haver um único polo de poder no mundo. Agora temos vários, e a China é um deles.