19 agosto 2017 às 00h54

Que campanha eleitoral fazer quando tudo ardeu?

O presidente eleito em 2013 pelo PSD é agora recandidato pelo PS. O seu antecessor, do PSD, tenta voltar. Em Pedrógão Grande trocam-se agora acusações sobre a gestão da imensa solidariedade nacional que recebeu

João Pedro Henriques

Até ao incêndio de 17 de junho, que matou 64 pessoas e feriu mais de 200, o que se sabia do panorama eleitoral autárquico em Pedrógão Grande, no distrito de Leiria, era bastante simples: o presidente eleito, Valdemar Alves, eleito numa lista do PSD em 2013, avançaria agora encabeçando uma lista do PS; o PSD, pelo seu lado, recandidataria um seu antigo presidente da câmara por vários mandatos, João Marques, que em 2013 foi impedido de ser novamente candidato por causa da lei da limitação dos mandatos. Preparavam-se ambos para disputar um concelho muito pequeno do Pinhal Interior Norte, com menos de quatro mil eleitores (3441, em 2015) distribuídos por apenas três freguesias, e cinco elementos no executivo camarário em disputa (presidente da câmara incluído).

Os especialistas locais contavam com uma campanha do presidente eleito pelo PSD e agora recandidato pelo PS que sublinharia em seu benefício o saneamento das contas da câmara: em 2013, o saldo financeiro era negativo (cerca de 500 mil euros); em 2015, já era positivo (1,1 milhões de euros (dados da Pordata). Valdemar Alves - um inspetor da PJ reformado que passou a vida toda fora do concelho e decidiu voltar quando se aposentou, antigo vizinho da família de António Costa no Bairro Alto, em Lisboa, e até ex-colega do primeiro-ministro em Direito - agitaria de novo perante os munícipes o fantasma de uma espécie de regresso a um passado já resolvido nas urnas.

Só que o incêndio - a maior tragédia humana em Portugal desde o 25 de Abril, o 3.º incêndio mais mortal desde que há registos na Europa (depois de um na Grécia, em 2007, e de outro em França, em 1949) - veio mudar tudo. Além dos 64 mortos, o fogo atingiu outros cinco concelhos - Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pera, Alvaiázere, Penela e Góis -, numa área total de 410 quilómetros quadrados (quatro vezes a área de Lisboa, dez vezes a da cidade do Porto). 150 pessoas ficaram desalojadas. Mais de 200 no desemprego, por causa de empresas queimadas. O incêndio demorou uma semana a ser dado como extinto.

Valdemar Alves manteve-se uma personagem discreta mas o seu adversário, João Marques, ganharia foros de primeira página, com uma informação falsa que daria a Passos Coelho - e que este usou publicamente para atacar o governo: "Eu tenho conhecimento de vítimas indiretas deste processo, de pessoas que puseram termo à vida, pessoas que em desespero se suicidaram e que não receberam em tempo o apoio psicológico que deveria ter existido." Depois de confirmado que não havia nenhum suicídio registado, Passos desculpou-se pela informação errada. Ao mesmo tempo, o seu staff revelava a fonte original: o provedor da Misericórdia de Pedrógão. Que é, nem mais nem menos, a mesma pessoa que o candidato do PSD à câmara.

Ora esta acumulação de tarefas - candidato do PSD e provedor da Misericórdia local - colocou o candidato "laranja" na posição de ter de garantir que os donativos recebidos da generosidade nacional para com as vítimas do incêndio não serão instrumentalizados na sua campanha. Os donativos terão ascendido, ao todo, a mais de 13 milhões de euros, e só a União das Misericórdias - de que depende a Misericórdia de Pedrógão - recebeu pelo menos cerca de 1,3 milhões, receita de um concerto realizado em Lisboa, no Meo Arena.

A forma como as verbas da solidariedade têm sido geridas tem suscitado trocas de acusações entre as candidaturas. Mas não só: o apoio psicológico aos sobreviventes não terá estado à altura das necessidades e o próprio governo acabou por o reconhecer, implicitamente, quando disse que tinha de ser "reforçado". Eleitoralmente, permanece uma incógnita: até que ponto as críticas à atuação governamental atingirão o (re)candidato que avança (agora) pelo PS. O PSD, pelo seu lado, tem uma força estrutural no concelho - e aliás em todo o distrito - que ninguém desconhece. E, entre os socialistas, a escolha de Valdemar Alves é muito contestada, o que levou ao anúncio recente de 30 demissões nas estruturas locais do partido.

Ao mesmo tempo, o PSD nacional desencadeou uma forte campanha pela divulgação da lista oficial dos nomes dos que morreram, insinuando pelo meio o que localmente muitos alvitravam (e que foi ecoado em alguma imprensa nacional): na verdade, não tinham morrido só 64 pessoas, tinham morrido muitas mais - e o governo estaria a ocultar essa informação. O PSD nacional fez ultimatos ao governo e o Ministério Público (MP) respondeu, divulgando então os 64 nomes. Há uma 65.ª vítima que não foi contabilizada - porque morreu atropelada e não carbonizada ou sufocada - e uma 66.ª, vítima de pneumonia, um mês depois, um reformado da PSP que vivia, acamado, na aldeia de Nodeirinho (onde morreram 11 pessoas). Ninguém surgiu entretanto a dizer ter conhecimento de mais vítimas não identificadas na lista divulgada pelo MP.

O concelho vai, entretanto, reerguendo-se - e não há semana que não receba a visita do Presidente da República. Já há casas em reconstrução (embora não à velocidade que Marcelo gostaria). Aqui e ali já se vislumbra vegetação nova despontando entre as cinzas.