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Cidades
12 dezembro 2018 às 17h08

Das alfaces para Lisboa à ajuda nas contas. A história de Entrecampos

Zona de abastecimento da capital, de diversão e agora esperança para ajudar as contas da cidade. A vida de uma área de quintas entre campos: o grande e o pequeno.

Carlos Ferro

Começou por ser quintas de onde saíam as alfaces e outros alimentos para encher o prato dos lisboetas, depois recebeu o mercado de gado que servia a capital, seguiu-se a Feira Popular e as suas diversões e agora, depois de desmantelada a feira e ao fim de quatro tentativas, vendida por 238, 5 milhões de euros pela Fidelidade. Um valor que ultrapassou o previsto em 85 milhões.

Esta é a história com mais de um século dos terrenos mais famosos da capital, atualmente. Os mesmos que já por quatro ocasiões a autarquia tentou colocar em hasta pública e por outras tantas vezes não conseguiu, até hoje. Consumada a venda, espera-se agora a concretização de um ambicioso projeto urbanístico.

O que está previsto para os terrenos de Entrecampos é um projeto urbanístico que pretende mudar a face de uma zona de Lisboa que está abandonada, com erva a crescer por todo o lado. Ali e na área limítrofe a autarquia liderada por Fernando Medina quer ver crescer 700 apartamentos com renda acessível e 285 de venda livre; áreas verdes, comércio, creches e jardins-de-infância, uma unidade de cuidados continuados com lar e serviço de apoio domiciliário. Contando que todo este projeto dê emprego a 15 mil pessoas.

É isto que está projetado para o futuro - a construção deverá terminar em 2021. Se isso acontecer, fechar-se-á mais um ciclo de uma zona que foi rural, com quintas e azinhagas, e que acabou por se transformar devido ao crescimento da cidade para norte no final do século XIX - quando surgiram as Avenidas Novas - numa freguesia que tem cerca de 20 mil habitantes.

A zona rural que dividia a cidade

Atualmente quem passa pela zona onde esteve durante 42 anos a Feira Popular não fica indiferente ao abandono a que foi votada. A erva e a vedação de rede convivem com as modernas ciclovias e a renovada Avenida da República, mantendo-se à espera do dia em que também a sua face será renovada. Atualmente é pouco agradável ver o estado em que se encontra aquele terreno que ficou conhecido como Entrecampos, por ser a divisória de... dois campos: o Campo Pequeno (onde está a Praça de Touros de Lisboa) e o Campo Grande - a área que a aristocracia do século XIX usava em momentos de recreio e nas suas cavalgadas.

"Os terrenos têm duas fronteiras: o viaduto ferroviário e no outro extremo o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, que é uma espécie de final do desenvolvimento das Avenidas Novas", explica ao DN Anísio Franco, historiador e conservador do Museu Nacional de Arte Antiga.

Tanto o viaduto como a estátua, inaugurados, respetivamente, a 17 de fevereiro de 1950 e 8 janeiro de 1933, representam as escolhas da época, mais próximas "de um certo gosto burguês que se achava mais interessante na altura".

E o que existia entre estas duas fronteiras da cidade, como lhe chama o conservador do MNAA? "Quintas, azinhagas, um caminho que vinha do Campo Pequeno até ao do Arco Cego e passava por trás do Campo Pequeno. Em Entrecampos havia uma paragem num chafariz, que ainda lá está [foi construído em 1851 e integrava a rede de abastecimento de Lisboa que ligava ao Aqueduto das Águas Livres], e depois seguia-se a direito até à igreja do Campo Grande", conta.

Do gado até à Feira Popular

Era neste ambiente mais rural do que citadino - Lisboa estava a desenvolver-se para o lado do rio Tejo - que estava instalado desde 1888 o Mercado Geral de Gados. Aqui, eram expostos e vendidos todo o tipo de animais destinados ao consumo da cidade. Era um edifício com 200 metros de largura e 100 de comprimento que podia, segundo o blogue lisboadeantigamente, receber "mil bois, duas mil ovelhas, carneiros e cabras, 500 porcos e 200 cavalos". Há fotos em que é possível ver os animais a pastar relativamente perto dos edifícios na Avenida 5 de Outubro.

"Depois foi transferido para Moscavide, pois achou-se que era higiénico ter o matadouro fora das portas da cidade. O terreno ficou sem utilidade e é assim que se colocou ali a Feira Popular, que estava em Palhavã, onde hoje está a Gulbenkian", recorda Anísio Franco.

"Na verdade, antes do matadouro aquilo eram quintas, casas de produção agrícola. Era dali que vinham as alfaces e outros víveres que alimentavam a cidade. Iam para o mercado das Picoas, que era o mercado distribuidor da cidade", sublinha, concluindo: "A cidade desenvolvia-se para o rio. E a zona alta alimentava Lisboa."

Depois destas mudanças, os terrenos recebem, durante mais de 40 anos, a Feira Popular, a grande zona de diversões da cidade, que financiava as ações da Fundação O Século. A degradação do espaço levou ao seu encerramento em 2003, para que fosse construída uma nova feira. Mas esse projeto não passou disso mesmo. E o futuro parque de diversões lisboeta, cujo projeto já foi apresentado por Fernando Medina, deverá surgir em Carnide.

A indemnização à Bragaparques

Com os portões da feira fechados - durante muitos anos os muros ainda se mantiveram de pé -, a autarquia tentou desfazer-se destes 25 hectares.

Começou com um negócio de permuta com a Bragaparques - a empresa recebia os terrenos e dava à autarquia os do Parque Mayer, e podia exercer o direito de preferência num lote que não estava incluído na Feira Popular. Mas este acabou em tribunal com o julgamento do presidente da autarquia em 2005, Carmona Rodrigues, e de dois ex-vereadores: Fontão de Carvalho e Eduarda Napoleão. Todos foram absolvidos das acusações de prevaricação de titular de cargo político.

Este imbróglio jurídico ainda se mantém, pois a Câmara Municipal de Lisboa contestou o pagamento de 138 milhões de euros à Bragaparques decidido por um tribunal arbitral.

Chegamos assim a uma nova tentativa de vender os terrenos. Uma hasta pública que foi adiada por dez dias para que, segundo o presidente da autarquia anunciou em conferência de imprensa no dia 9 deste mês, a procuradora do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul, Elisabete Matos, pudesse analisar as respostas dadas a um requerimento que enviou com dúvidas sobre a Operação Integrada de Entrecampos.

Fernando Medina anunciou então que a abertura das propostas - se forem concretizadas as manifestações de interesse que diz terem chegado aos serviços - ficava marcada para esta sexta-feira, dia 23, e o prazo final para a entrega de propostas agendado para as 17.00 de quinta-feira.

Seria um momento fulcral para se saber se as ofertas atingem os 180 milhões previstos na licitação-base para os quatro lotes, um financiamento importante para equilibrar o orçamento do próximo ano, em que estão inscritas verbas extras como a obtida com a hasta pública e os 22 milhões da taxa turística para atingir os 1057 milhões de euros, mais 246 milhões do projetado para 2018.

Dúvidas que iriam ser desfeitas na manhã de dia 3 de dezembro, mas novo adiamento surgiu. Foi preciso esperar até ao dia 12 de dezembro para finalmente se saber quem ficou como dono dos terrenos de Entrecampos. Arrematado.