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17 AGO 2019
20 agosto 2019 às 18h51

"Portugal deveria ser o campeão do federalismo europeu"

Grande pensador sobre o que deve ser a União Europeia, Viriato Soromenho-Marques lamenta que Merkel não tenha tornado a crise uma oportunidade de transformação estrutural e diz-se profundamente desiludido com Macron.

Leonídio Paulo Ferreira

O seu mais recente livro tem como título Depois da Queda e fala da União Europeia entre o reerguer e a fragmentação. Que queda é esta? Uma crise existencial, agravada pelo Brexit?
A "queda" de que falo está bem visível não apenas no Brexit. Vejam-se todos os sinais de estiolamento de valores fundamentais da construção europeia, como é o caso da democracia representativa e dos direitos humanos, ameaçados por governos iliberais, como ocorre com os países de Visegrado e agora com Roma. Ou a erosão de Schengen, com o reabrir de controlos fronteiriços em muitos locais, o desencantamento popular em relação à UE, a desaceleração e cancelamento da entrada de novos países no euro, a paralisia de muito investimento privado, devido às incertezas no futuro. A minha tese central é a de que a UE vive desde 2009 num regime de "agonia lenta", criando falsas terapias para problemas mal diagnosticados. A "queda" de que falo consiste na inevitável aproximação de um momento crucial, num horizonte temporal imprevisível, em que ou o projeto europeu tem uma cura de verdade, e se reergue oferecendo esperança e ganhando o apoio dos cidadãos, ou, debaixo da ausência de respostas à próxima crise, corremos o risco de uma reação em cadeia no sentido da fragmentação, com consequências que ninguém pode antecipar com rigor...

Mas o que seria essa "cura de verdade" que faz falta à UE?
Trata-se de compreender que existe uma diferença entre os sintomas da doença e a sua causa profunda. Durante anos falou-se da "crise das dívidas soberanas" quando, na verdade, o aumento da dívida pública resultou, em grande medida, dos empréstimos de emergência dos Estados aos seus bancos para evitarem um meltdown do sistema financeiro. Mas o próprio impacto na banca europeia da crise sistémica iniciada nos EUA em 2008 também só foi possível devido à patologia profunda de que sofre o projeto europeu: as deficiências genéticas do desenho e da estrutura da zona euro, desde o seu início em Maastricht [1992]. A cura de verdade de que falo significa que para sobreviver a UE tem de fazer uma reforma profunda da zona euro, que constitui o seu núcleo vital.

Que reforma seria essa? Por que razões ela tem tardado?
Quando o euro foi lançado houve uma discussão profunda sobre se a moeda comum deveria resultar da convergência real ou se, pelo contrário, essa convergência seria apressada pela moeda comum. Como sabemos, ganhou esta segunda tese, dominantemente francesa. Contudo, em nenhum momento se encontra nessa época uma posição que afastasse a necessidade de um orçamento europeu cada vez maior e de uma união política que servisse de âncora à eficácia da união monetária. O que aconteceu nestas décadas faz lembrar aqueles países em desenvolvimento em que as pessoas deixam as casas por pintar para não pagarem impostos... O euro fazia parte de um processo de integração europeia cada vez mais profundo, entretanto essa ideia foi abandonada por uma visão mercantilista de Europa que considera dever o euro servir sobretudo para evitar o risco cambial às indústrias exportadoras. A ideia de um orçamento federal, de uma "união de transferência" visando compensar assimetrias e alimentar a convergência económica e social, que em 1990 era óbvia para todos, aparece hoje como um espectro para a elite alemã, holandesa ou finlandesa. Aí está a raiz da doença europeia. Se a UE continuar a ter um orçamento de apenas 1% do PIB, a divergência entre países e dentro dos países continuará. A queda terminará em fragmentação.

O que pensa da herança que a chanceler alemã Angela Merkel nos vai deixar? E tem o presidente francês Emmanuel Macron estado à altura das suas promessas?
Merkel poderia ter desempenhado na história da Europa um papel análogo ao de Bismarck na história alemã: ter transformado uma crise numa oportunidade de transformação estrutural. Em vez disso, fez aquilo que o falecido sociólogo alemão Ulrich Beck designava como o uso da "hesitação" como mera tática de dominação e não de mudança. Todavia, em favor de Merkel deve reconhecer-se o seu instinto para antecipar o perigo, instinto que a testosterona parece prejudicar... Ela combateu os exageros de Schäuble, apoiou as medidas de financiamento monetário da economia de Mario Draghi, mesmo contra a hostilidade do seu presidente do Bundesbank, Jens Weidmann. Seguro é que sem uma mudança profunda da atitude alemã não haverá futuro europeu comum. Talvez a crescente vulnerabilidade das exportações alemãs fora da Europa ajude Berlim a regressar a casa... Macron, por seu lado, tem sido uma profunda desilusão. Em 2018, eu e o economista Ricardo Cabral, por solicitação dos alemães da Fundação Heinrich Böll, estudámos com algum detalhe as propostas em cima da mesa para a reforma da zona euro. São uma ilusão. Macron não percebeu que essa reforma não pode ser feita sem combater os preconceitos neoliberais em que ele persiste em acreditar.

O modo como o Brexit tem sido gerido pelos britânicos funciona como vacina contra outras saídas? Que pensa de Boris Johnson, agora primeiro-ministro?
Apesar da enorme importância económica do Reino Unido, o facto de este não fazer parte da zona euro torna a sua saída da UE uma possibilidade dolorosa mas não catastrófica. Estou convencido de que todos iremos perder com o Brexit, mas que os impactos no Reino Unido, sem falar na possibilidade de secessão da Escócia, vão ser incomparavelmente superiores nos próximos dois anos em Londres do que em Bruxelas. A ameaça de Boris Johnson de saída sem acordo vai na linha de irresponsabilidade dos governos britânicos anteriores. De Tony Blair a David Cameron o percurso é sombrio, com consequências trágicas como nas aventuras do Iraque e da Líbia ou na absurda organização do referendo do Brexit. O problema com Boris Johnson é que a política precisa de uma base racional para ser exercida. A maior parte das coisas que lhe escutamos são opiniões, às vezes fábulas, sempre servidas por um infinito voluntarismo. Se Londres desistiu da sua antiga estratégia de intervir nos assuntos europeus para impedir que eles se voltem contra si, o que poderemos fazer deste lado do canal?

Como vê o distanciamento entre os Estados Unidos e a Europa desde a eleição presidencial de Donald Trump?
Com tristeza. Um capítulo lamentável na difícil adaptação do Ocidente a uma posição mais modesta no mundo. Os EUA, na certeira definição de Raymond Aron, são uma "democracia imperial". O problema é que o império está em declínio, em simultâneo com uma democracia fragilizada pela captura dos representantes pelo poder económico, como o desprestígio do Congresso o evidencia. Trump é um sintoma da doença americana. O terrorismo niilista dos massacres domésticos é outro. Contudo, mais depressa os EUA serão capazes de ultrapassar Trump do que a UE será capaz de ter uma postura comum perante os EUA. O peso das importações americanas falará sempre mais alto.

Acredita que a Rússia quer destruir a União Europeia ou é possível imaginar um dia um alargamento até Vladivostoque?
A Rússia é incomparavelmente mais frágil do que a UE, mesmo a sua despesa militar é três vezes inferior. O colapso da URSS constituiu para Moscovo uma imensa perda de território e população. Putin trabalha sobre o medo tradicional das invasões vindas do Ocidente, coisa que a expansão da NATO para Leste tem ajudado a reavivar. Penso que a Rússia se limita a explorar as contradições internas dentro da UE, mas não tem capacidade, mesmo que tivesse interesse, para as criar. Uma futura federação europeia deveria ter uma boa relação com a federação russa, não fundir-se com ela.

Será que, pelo menos, nas alterações climáticas a UE continua a dar o exemplo ao mundo?
Nenhum outro grande emissor de gases de estufa reduziu como nós as suas emissões em 22% relativamente a 1990. Contudo, a UE representa apenas 10% das emissões globais, e sabemos hoje que a situação é muito mais grave do que se supunha. Não só o objetivo europeu da neutralidade carbónica em 2050 deve ser antecipado, como deveríamos colocar o combate pelo clima e pelo ambiente também no centro de uma diplomacia comum. Se não houvesse outro motivo em favor da unidade europeia, bastaria o do combate pela defesa de uma Terra habitável para a justificar. Cada vez iremos perceber melhor que este é o desafio ontológico fundamental desta época. E a UE pode e deve liderar pelo exemplo.

Como se explica o euro-otimismo nacional? Que papel terá a Europa na campanha para as próximas legislativas portuguesas?
Não se vai discutir nada. As elites portuguesas seguem o rumo das suas congéneres ocidentais que é o de cultivar a amnésia. Só o traumatismo da perda de uma geometria imperial em 1974, que garantiu a nossa independência em 1640 e em 1807, é que explica o deslumbramento bacoco de gente respeitável com a CEE/UE e o modo irracional como nos atrelámos ao comboio de Maastricht. Quando saímos da Europa em 1415, foi para podermos garantir a nossa independência europeia. Mesmo o salazarismo, ao contrário de alguma mitologia, desenvolveu uma política europeia fortíssima para manter o império. Temos de reconhecer que nos esquecemos depois de 1974, de que a CEE continuava a ser um sistema internacional, uma balança do poder, para onde não se pode entrar a contar com a bondade dos outros. Aprendemos à nossa custa depois de 2011... O "europeísmo" é uma categoria que coloca uma nebulosa afetiva no lugar que deveria ser ocupado pela racionalidade crítica. Os europeus não necessitam de amor, mas sim de justiça. Por isso continuo a defender, sem muita companhia, que Portugal deveria ser o campeão do federalismo europeu. Uma Europa onde a soberania nacional seria garantida pela clareza de uma Constituição federal, que permitiria a independência, sem prejudicar a cooperação para as causas em que só unida a Europa poderá ter sucesso. Hoje reina uma pastosa cumplicidade. A última eleição para os cargos de topo da UE parecia uma reedição dos jogos de bastidores de onde saíam os imperadores do falecido Império Romano-Germânico...