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22 FEV 2019
22 fevereiro 2019 às 06h22

A história de Xia foi premiada. O duplo amputado que chegou ao cume do Evereste

Alpinista chinês conquistou nesta semana o troféu Laureus para o melhor momento do ano. Ficou sem os dois pés quando subiu pela primeira vez ao Evereste, mais tarde perdeu as duas pernas, mas nunca desistiu do seu sonho. À quinta tentativa, no ano passado, conseguiu: "O Evereste finalmente aceitou-me."

Nuno Fernandes

Em 1975, Xia Boyu foi um dos alpinistas apanhados numa enorme tempestade quando tentava subir o monte Evereste, naquela que era a sua primeira tentativa. A falta de oxigénio e o facto de estar exposto a temperaturas polares originaram uma hipotermia grave. E aos 25 anos foi obrigado a amputar os dois pés. Um rude golpe num homem que tinha como maior paixão o alpinismo e que de um momento para o outro ficou privado de voltar a viver este tipo de desafios. Uma das causas para a hipotermia foi o facto de ter cedido o seu saco-cama a um companheiro, num gesto heroico que lhe saiu caro.

O destino pregou mais uma partida a Xia Boyu, quando em 1996 lhe foi detetado um linfoma e se viu obrigado a amputar as duas pernas. O sonho de voltar a subir o Evereste, que já era apenas uma miragem, parecia tornar-se para sempre impossível.

É aqui que começa a verdadeira história de superação deste alpinista chinês, que mesmo amputado das duas pernas decidiu que ia voltar à montanha mais alta da terra com o objetivo de conseguir escalar os 8848 metros de altura do cume pelo lado do Nepal e que é o sonho de qualquer alpinista.

Em 2014, Xia aventurou-se mais uma vez no Evereste. Mas uma avalanche que na altura vitimou 16 sherpas levou as autoridades nepalesas a encurtar a temporada de alpinismo e não chegou sequer a iniciar a subida. No ano a seguir, quando estava preparado para iniciar a aventura, um novo contratempo: um terramoto atingiu o Nepal e na montanha morreram 22 pessoas que estavam num acampamento. Tinha acabado de subir 300 metros e foi obrigado a parar.

No ano de 2016, à sua quarta tentativa, esteve a cerca de 200 metros de completar o sonho de uma vida. Mas uma vez mais o destino impediu que concretizasse o objetivo. E foi obrigado a voltar para trás devido ao mau tempo. Uma enorme frustração que faria qualquer pessoa desistir de vez. Mas Xia manteve-se firme na sua intenção. "O meu sonho é escalar o Evereste. Tenho de fazer isso. Representa também um desafio pessoal, um desafio do destino", reclamou na altura.

Diz-se que à terceira é de vez, mas para este alpinista chinês o concretizar de um sonho só surgiu à quinta tentativa. Em maio de 2018, seis semanas depois de ter começado a escalada, chegou finalmente ao cume da montanha mais alta do mundo. Tinha 69 anos e tinham passado 44 desde aquele dia em que tinha sido apanhado por uma tempestade que obrigou a que lhe amputassem os dois pés. Fê-lo com a ajuda de duas próteses e poucos meses depois de um tribunal ter contrariado uma normativa do governo nepalês, que queria impedir os amputados (e pessoas com outro tipo de deficiências) de se aventurarem a escalar o Evereste.

"Era um sonho que perseguia há mais de 40 anos. No passado fui impedido de escalar o Evereste devido a tempestades, mau tempo e terramotos. Mas desta vez, mais de 40 anos depois, o Evereste finalmente aceitou-me. Este é o poder da persistência, o prémio por nunca ter desistido", disse no ano passado, citado pela CNN, descrevendo as dificuldades que sentiu: "As próteses não nos permitem ter o mínimo de sensação sobre o chão que pisamos. Foi preciso aprender a sentir dia-a-dia. A descobrir a sensação. Tive de ter três vezes mais força física do que uma pessoa normal."

Quando Xia Boyu conseguiu a proeza de chegar ao cume do Evereste, o seu filho deixou uma mensagem sentida na rede social chinesa WeChat: "O meu pai cumpriu o seu sonho de 40 anos."

Depois de se ter tornado o primeiro amputado a escalar o monte Evereste pelo lado do Nepal (o neozelandês Mark Inglis, em 2006, conseguiu a proeza pelo lado chinês), Xia Boyu chegou a ser alvo de críticas por parte de algumas entidades nepalesas.

"Temos de proteger a vidas das pessoas. Há os tipos que querem subir a montanha sem uma perna só para ficarem detentores do recorde. Há outros que o fazem sem braços, outros são cegos. Houve até quem quisesse subir de cadeira de rodas. Muitas vezes a intenção não é subir o monte Evereste. Só o querem fazer para ficarem na posse de um recorde. E é por isso que o governo quer travar", disse à revista Time o vice-presidente da Associação de Montanhismo do Nepal.

O governo nepalês tem uma longa tradição de aprovar medidas de modo a reduzir o risco de perda de vidas de pessoas que se aventuram a subir o Evereste. De acordo com dados do ano passado, de um total de 17 675 pessoas que tentaram escalar a montanha, 288 morreram. Do total de 29 alpinistas que se aventuraram, dois perderam a vida.

A perseverança de Xia Boyu valeu-lhe nesta semana um prémio. Todos os anos, os troféus Laureus premeiam uma história de superação, o Momento do Ano, que na edição passada tinha sido ganha pela Chapecoense, clube brasileiro que conseguiu sobreviver depois da tragédia que vitimou quase toda a equipa de futebol após a queda de um avião. A história de Xia concorria com mais dois nomeados - Joe Thompson, jogador de futebol que voltou a jogar depois de ter vencido um linfoma. E Gilberto Martínez, um adepto da seleção mexicana que perdeu a família num acidente de viação antes do Mundial de futebol e que mesmo assim fez a viagem a conselho do seu terapeuta para cumprir o seu sonho e da sua família: ver um jogo entre o México e a Argentina.

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"Conseguir chegar ao topo do Qomolangma foi sempre um sonho e um golo para mim. Lutei por isso nas últimas quatro décadas. Apesar de muitos contratempos, nunca desisti. A perseverança tornou a minha vida mais colorida e com sentido", referiu depois de ter recebido na segunda-feira o troféu Laureus, na gala realizada no Mónaco, onde anunciou o seu próximo desafio: fazer o "7+2", ou seja, escalar as montanhas mais altas dos sete continentes e ainda do Polo Norte e Sul.