30 MAR 2019
02 abril 2019 às 12h17

Pedro Mestre salvou a viola campaniça e leva o cante às salas de aula do Alentejo

Aos 11 anos começou a aprender viola com os mestres e hoje passa aos alunos o amor pela música da tradição. Lança no dia 5 o segundo disco em nome próprio: Mercado dos Amores.

Helena Tecedeiro

"O Francisco tem sempre a viola desafinada!", exclama Pedro Mestre a rir enquanto pega no instrumento e começa a afiná-lo. Ao seu lado diante do quadro onde alguém escreveu o sumário está Francisco Horta. Há quase dois anos que começou a aprender a tocar viola campaniça e agora, aos 10, ajuda o professor quando este vai à Escola Básica de Baleizão. À frente deles, as duas dezenas de alunos esperam silenciosamente. Os mais pequeninos à frente, ou não juntasse a aula todos os alunos do primeiro ciclo. "Carolina, andas a tocar na viola do teu irmão?", lança à menina de cabelos escuros. Viola afinada, pode começar a aula.

Estamos em Baleizão, a localidade do distrito de Beja que todos conhecem por ser a terra de Catarina Eufémia, a ceifeira morta durante uma greve e que se tornou símbolo da Revolução. Por detrás dos portões vermelhos entoa-se "é linda a primavera". De olhos no livro com as letras ou a olhar para Pedro Mestre, todos cantam. Todos menos Dani. "Dani, não cantas?", pergunta uma das professoras que veio juntar-se à aula. Dani está chateado, quer cantar o Gato Ferrinho. "Estou farto dos gatos", brinca Pedro Mestre enquanto se levanta, de viola na mão e se aproxima. "O gato Ferrinho, o gato Ferrão/ namora as moças todas lá de Baleizão", cantam todos, com Dani a ser o mais entusiasta. "Esse gato é maroto!", ri-se o professor.

O projeto começou há 13 anos, foi nessa altura que Pedro Mestre decidiu levar o cante às escolas. "O amor à música, o amor à terra, o amor às tradições leva à preocupação de envolver outras gerações. Nesse sentido surge o projeto cante nas escolas. Desde 2006 que levo ao primeiro ciclo esta música da tradição", explica. O objetivo, garante, não é formar cantadores, mas "sensibilizar as crianças para esta realidade. Falar de memórias, do que foi a sua terra no passado". A terra deles ou a que os acolheu, como a meia dúzia de meninos romenos que frequentam a escola de Baleizão. "São mais alentejanos do que os outros!", brincam as professoras.

Baleizoeiro de gema é Francisco. Afastando a franja escura dos olhos, o menino garante que aquilo de que mais gosta é de "tocar viola e cantar". Um gosto que muito deve a Pedro Mestre. Mas o que tem o professor de diferente? "É divertido", diz a sorrir. E garante que quando for grande gostava de ser como ele - de poder levar a sua música aos outros.

Do cante na taberna às violas dos mestres

Esta realidade hoje é bem diferente da que Pedro Mestre conheceu quando andava na escola. Nascido em Beja há 35 anos, mas criado numa aldeia chamada Sete - "com uns 400 habitantes", foi ali que fez a primária e onde começou a contactar com a música tradicional alentejana. "Lá em casa havia um rádio, uma telefonia, que tocava música local sempre. Há uma altura em que aparece um programa de música da tradição chamado Património, que ainda existe! Os ouvintes ligam e dizem o que querem: cantam, dizem poesia, adivinhas, cumprimentam as pessoas. O programa ganha uma grande dimensão de participantes a cantar. A cantar modas. A cantar de improviso. A cantar quadras soltas. Eu adorava ouvir aquilo!", exclama. Os olhos brilham atrás do volante, numa das inúmeras viagens que faz todos os dias entre a casa em Castro Verde, as escolas onde dá aulas e as vilas e aldeias onde trabalha como ensaiador de grupos corais, devorando quilómetros pelas estradas muitas vezes desertas do Baixo Alentejo.

Foi em casa, portanto, que a paixão pela música da tradição alentejana começou. O avô tinha uns tios solteiros, lembra, que iam para a taberna e voltavam de lá a cantar, já tarde. A avó estava chateada, com a mesa posta à espera. Mas a discussão acabava sempre em cantoria. Eram outros tempos, no calor da primavera e verão alentejanos, ao fim do dia, todos vinham para a rua. "Eu gostava disso. Gostava de ouvir os mais velhos. A música fascinava-me! Saía à rua, se ouvisse cantar na taberna ia para lá. Mas ia mesmo, com oito, nove anos. Às vezes, a minha mãe mandava-me ir buscar o meu avô para ir jantar. Mas se eles estivessem a cantar, o meu avô punha-me no colo dele e acabou!"

Mas o momento de viragem só se deu quando foi estudar para Castro Verde. Tinha nove anos e descobriu que alguns colegas andavam num grupo coral infantil chamado Os Carapinhas, que ainda existe. "Eu quando ouvi aquilo pensei: "Não posso! Adorava cantar num grupo assim."" Por isso, lá foram no intervalo e os colegas apresentaram-no à senhora que ensaiava o grupo.

Aos 9, 10 anos começou a cantar no grupo, aos 11, 12 passou a tocar viola campaniça. O instrumento não lhe era estranho, já o ouvia na tal telefonia lá de casa. Mas teve a sorte de aprender com os mestres: Manuel Bento e Francisco António. "Eu já ouvia a viola e pensava: este som é tão bonito! Identificava-me com ele. Eles diziam que, se tivessem alguém que quisesse aprender, eles ensinavam. Mas ninguém queria. Eu levantei o dedo: "Eu quero aprender"", recorda.

Desde esse dia, garante este alentejano pouco típico - alto e ruivo, características que diz ter herdado de um bisavô austríaco que servia na base militar de Beja - não voltou a ser o mesmo. "A viola e a música era aquilo que queria na minha vida. Todos os dias." Os mestres e a ensaiadora do tal grupo coral, Evangelina Torres, passaram a tratá-lo como família. Um sentimento que dura até hoje, mesmo depois da morte de Manuel Bento e de Francisco António.

Mas se Pedro Mestre garante que a madrinha Evangelina é como "uma segunda mãe", foi a mãe, Laurinda Mestre, quem tornou tudo isto possível. "A minha mãe tinha carta e carro, levava-me a todo o lado." Afinal foi ela a primeira pessoa que Pedro ouviu cantar. "Ela estava sempre a cantar lá em casa. E eu adorava e ainda hoje adoro ouvi-la cantar."

Os anos passaram e a música tomou conta da vida de Pedro Mestre. Aos 16 anos criou um grupo coral na aldeia dele, rapidamente passou a ser chamado para ensaiar outros, começou a fazer recolhas e gravações dos mais velhos, a fazer um acervo de informação. E foi a junção do cante com a viola, garante, que trouxe a juventude para a música tradicional alentejana. "Os miúdos que na altura, quando fui para um coral infantil, se riram de mim, de andar com os velhos, de pôr um chapéu, sete, oito ou dez anos depois vinham ter comigo a elogiar e a querer comprar os discos. Houve uma mudança de interesses por parte das camadas mais jovens que projetam a dimensão que temos hoje."

De tal forma que parte do plano de salvaguarda do cante à UNESCO - que o reconheceu como Património da Humanidade em 2014 - é o projeto dele de ensino nas escolas.

Pedro Mestre mantém a colaboração com vários grupos corais da região. Foi numa ida aos Estados Unidos com o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento que nos conhecemos. Pedro esteve com o rancho no palco do Kennedy Center, em Washington, para dar a conhecer o cante alentejano na América, o país convidado deste ano do Festival Terras Sem Sombra.

Vender amores

Agora, além das aulas, dos concertos, da direção da escola de viola, que funciona na Casa do Povo de São Martinho das Amoreiras - em horário pós-laboral e com alunos "dos 7 aos 77 anos" -, Pedro Mestre tem um novo projeto: o disco Mercado dos Amores, que lança a 5 de abril. Segundo CD em nome próprio, apesar de já ter gravado dezena e meia com outros grupos, o sucessor de Campaniça do Despique, que lançou em 2015, é "um bocado mais duro". "Retrata um amor não correspondido, um coração destroçado. Ele está cheio de dores, de tormentos. Por isso, ele leiloa o coração, mas ninguém o quer", explica sobre a música que dá nome ao álbum e que surge cantada com um didjeridu. "É um instrumento estranho, assim como estranha é a letra."

Mas este trabalho estende-se para tudo o que acontecia no passado nas feiras e mercados da região, quando "havia vagar". E está cheio de outros amores. O amor à música, o amor ao Alentejo, o amor de pai, o amor ao vinho. "Fiz uma moda do vinho e depois surgiu a possibilidade usar a música como hino a uma capital dos vinhos de Portugal. Então convidei artistas para cantar a música comigo: o FF, o Ricardo Ribeiro, a Celina da Piedade, a Lúcia Moniz e o grupo coral dessa terra que é Reguengos de Monsaraz. Essa música vai sair neste meu Mercado dos Amores e no disco deles", explica.

Convencido de que o seu papel é o de ser uma "ponte" entre os mestres da viola campaniça e as novas gerações, Pedro Mestre não esconde o orgulho em ter conseguido salvar aquele instrumento. "Tenho em casa uma coleção de 115 violas, uma delas datada de 1861." Empenhado em ensinar outros não só a tocar como a construir aquele instrumento, garante que esse amor pela música, esse amor pelo cante já ajudou muitos jovens com dificuldades de aprendizagem a superarem-se e a ultrapassarem os problemas na escola.

Pai de dois filhos, Pedro Mestre garante que transmitir-lhes a sua música não é uma preocupação. "Se eles gostarem de mim vão gostar do que eu faço", diz. E se o bebé António Pedro ainda é muito pequenino para se manifestar, a Carolina, com 4 anos, já é uma apreciadora da música do pai. "As músicas de que ela mais gosta são as minhas. Ela inspira uma das músicas de Mercado dos Amores. Ela é um dos meus amores", exclama. Antes de acrescentar: "Aquilo que mais me orgulha é perceber que o entusiasmo com que me dedico ao que faço influencia outros e se projeta noutras pessoas. As pessoas aprenderem a gostar de algo por alguém gostar tanto. É isso que me faz continuar. Todos os dias."